2008

Cesar Callegari

O ano de 2008, por ser de eleições nos municípios de todo o Brasil, será de intensa reflexão acerca das cidades, do propriamente urbano, seus problemas e suas perspectivas. Há quem defenda, não sem razão, que entre as reformas estruturais requeridas por nossa sociedade, apresenta-se como prioritária a tarefa de uma reforma urbana. Ao contrário da concepção tradicional sobre reforma agrária, geralmente associada ao direito à terra para quem nela trabalha e ao combate ao latifúndio, sobre reforma urbana não há muito consenso sobre o que, de fato, isso significa. Talvez seja razoável pensar que ela envolve tudo, isto é, o conjunto articulado de mudanças nas diferentes dimensões econômicas e sociais presentes nas cidades. Em que pese à complexidade do problema, vale a pena refletir sobre esse tema e localizar a relevância da educação na formação da cidade como espaço republicano e democrático onde cidadãos devem ser acolhidos com o respeito aos seus direitos fundamentais.

Um primeiro ponto a considerar é que, em nosso país, as “fichas” dos valores propriamente urbanos acabam de cair ou ainda estão caindo, por assim dizer. Com um pouco de exagero, é possível dizer que acabamos de chegar da roça. De fato, faz pouquíssimo tempo, não mais do que 60 anos, que a população brasileira passou a viver majoritariamente em cidades. O Censo populacional de 1960 mostra que 55 % dos brasileiros viviam no meio rural e em seus núcleos isolados. No ano 2000, esse quadro já havia se transformado completamente, compondo uma realidade em que 82 % do povo já habitava o meio urbano. Por isso, do ponto de vista histórico e da composição dos valores sociais dominantes, no Brasil viver a cidade é algo muito recente. Nos grandes centros, é mais fácil encontrar pessoas que pertencem a famílias que vieram de fora não faz muito tempo do que habitantes tradicionais. A maioria veio do interior ou veio de outras regiões do país. É gente que chegou para ganhar e vencer na vida, não só nas cidades grandes, mas também, naquelas de porte médio e pequeno. Quase todos, agora, são cidadãos deste mundo contemporâneo e participam, embora de maneira desigual, do ambiente urbano-industrial. Ainda estão descobrindo, conhecendo e experimentando códigos e valores novos, próprios de um novo modo de vida, num processo cuja consolidação exige muito tempo e esforço de várias gerações e onde a família ainda tem e terá um papel estruturante da maior importância.

Além disso, é fato sabido que o processo de intensa urbanização que marca a etapa mais recente da formação econômica e social do Brasil acontece ao mesmo tempo em que se deflagram as formas mais atuais de manifestação do modo de produção capitalista, caracterizado pelo mais alto grau de globalização da economia e da cultura; e, vale dizer, da economia e da cultura vinculadas aos parâmetros e referenciais de tudo aquilo que se associa ao que é urbano-industrial, ao que é moderno. A tal ponto que cidade para onde se vai ou onde se vive já não é mais o que se sabia dela. Ela própria, aliás, está em constante transformação com intensos movimentos internos mudança de perfil, de deslocamento populacional e expansão de seus perímetros. Para os indivíduos, já é cada vez mais difícil ter a sensação de pertencimento.

A cidade continuará mudando em velocidade vertiginosa, deixando de ser lugar para se constituir em fluxo. Ela se cria e se recria o tempo todo, à maneira como acontece com todos os demais produtos e processos do modo capitalista de produção. Tudo se constrói, tudo se destrói, tudo se valoriza e tudo se arruina em alta velocidade, num movimento que se irradia afetando a tudo e a todos, continuamente.

O tema reforma urbana e tudo aquilo que ela pode significar e implicar, não soará de todo estranho nem mesmo para os que habitam os municípios ainda muito caracterizados por relações de produções próprias do meio rural. A intensa dinâmica de circulação de informações, mercadorias e serviços, bem como das múltiplas expressões da produção cultural, tudo isso impregnado dos valores hegemônicos desse urbano globalizado, desde logo estabelece uma pauta de problemas cada vez mais instantânea e universal.

Diante disso, deve-se perguntar, afinal, que tipo de educação poderá proporcionar aos cidadãos a capacidade de compreender a natureza desses movimentos frenéticos de criação e recriação da cidade e seus assuntos, a ponto de capacitá-los como protagonistas autorais coletivos do processo de criação de um mundo em mutação? O que está sendo feito nessa direção?

Pensar o urbano na perspectiva de uma reforma de base implica em reconhecer que o caminho para a cidade é marcado por rupturas que, aliás, continuam a se processar o tempo todo. Rupturas provocadas pelo esgotamento de possibilidades econômicas e das relações sociais prevalecentes nas regiões de origem, ou pela rápida transformação nas estruturas produtivas. Além disso, impulsionando a tendência, é generalizada a percepção de que as possibilidades reais de mobilidade social, de sucesso individual, são muito maiores no ambiente urbano. Nesse caso, não se trata de um fetiche ou de uma miragem: testemunhos dos que antes migraram e o martelar incessante dos apelos da indústria cultural reiteram que a cidade é a saída do “sufoco”, demonstram que convém arriscar e confirmam que é possível vencer, ainda que depois se constate que muitas conquistas não passaram de “vitórias de pirro”. Nem mesmo a exibição cotidiana da violência, do desemprego e da miséria como mostras da suposta inviabilidade dos grandes centros, nem isso chega a abalar decisões de tentar e arriscar por parte daqueles cuja realidade foi, desde sempre, marcada justamente pela falta de oportunidades, pela violência endêmica e pela pobreza crônica. Importa aqui dizer que os que chegam à cidade já não tem muito a perder, não olham para traz, não podem recuar e, acreditam, têm muito a conquistar. Assim são as cidades: habitadas por conquistadores urbanos convencidos de que ainda tudo pode dar certo.

Aí está, na força de conquistadores, o núcleo de uma extraordinária potência instalada, capaz de transformar pela base a própria estrutura da sociedade. Eis aí o elemento essencial cuja compreensão deve estar na base de um novo projeto educacional. Transformar seres isolados, concorrentes, invisíveis e, por vezes, egoístas, em cidadãos conscientes de sua identidade, de seus direitos e seus deveres, visíveis, solidários, participativos, protagonistas de seu presente e de seu futuro. Sem renunciar a suas ambições individuais, mas percebendo que elas podem e devem ser harmonizadas com um projeto coletivo. Uma educação capaz de transformar seres errantes em pertencentes, indivíduos em cidadãos.

Claro que isso não acontecerá se prevalecer um modelo de educação meramente instrumental e supostamente tecnicista que vem marcando políticas públicas brasileiras. Políticas insistentemente fracassadas, diga-se com honestidade. Rejeita-se desde logo uma educação pobre para os pobres. Ao contrário, defende-se aqui uma educação libertadora e transformadora, comprometida com a formação de espíritos críticos, participativos e criativos, uma educação democrática e humanista em que a arte, a ciência e a filosofia integrarão o eixo central. É preciso imaginar um modelo educacional vinculado a um projeto de nação e comprometido com a superação das desigualdades, com a eliminação de quaisquer formas de discriminação e de exclusão; um projeto politicamente determinado a respeitar singularidades e diferenças, reconhecer identidades e dinamizar as potências ligadas ao interesse público, entre eles o respeito à natureza.

Assim as cidades, o que é propriamente urbano, deixarão de ser a mera expressão daquilo que foi individualmente apropriado. Deixarão de ser somente o mundo do privado, para se transformarem em cidades verdadeiramente republicanas, manifestações complexas do interesse público.