publicado na Revista Carta Capital, de fevereiro de 2024,
por Cesar Callegari

Uma Proposta de Emenda Constitucional apresentada pelo governo Tarcísio de Freitas à Assembleia Legislativa reduz de 30% para 25% a parcela de impostos destinados à educação no Estado de São Paulo.  Se aprovada, estima-se um corte anual de R$ 10 bilhões no orçamento do setor, com graves consequências para a educação básica, técnica, tecnológica e superior.  Para se ter uma ideia do potencial de impacto, com esse dinheiro seria possível construir 5 mil creches por ano para um milhão de crianças ou aumentar em 50% os salários dos profissionais do magistério estadual. Essa PEC é um atentado brutal contra as garantias constitucionais de financiamento e oferta de ensino público em todos os níveis.

É preciso conhecer e respeitar a história. Em 1989, os constituintes paulistas estabeleceram como obrigação do Estado aplicar anualmente no campo educacional, no mínimo 30% da receita resultante de impostos. Portanto, 5% a mais do que o determinado no Art. 212 da Constituição Federal. Ao fazê-lo, os parlamentares estavam cientes das responsabilidades para com USP, UNESP e UNICAMP, a extensa rede de escolas técnicas e tecnológicas e da inestimável contribuição dessa estrutura para o desenvolvimento econômico e social do Brasil. Sobretudo, tinham pleno conhecimento dos enormes desafios de um sistema de educação básica que deveria atender com qualidade a milhões de crianças, jovens e adultos demandantes de condições fundamentais para o exercício de sua cidadania. Estava claro que seria preciso um esforço maior e continuado. Por isso, elevaram o piso dos investimentos públicos obrigatórios para o setor.

Trinta e quatro anos se passaram e os desafios continuam sendo gigantescos. Sim, houve avanços. Porém, continuamos a amargar baixos índices de qualidade na educação básica, professores são mal remunerados, muitos trabalham em total precariedade, universidades padecem por falta de docentes e a oferta de ensino técnico ainda é muito limitada. É uma vergonha que 37% das crianças paulistas cheguem ao terceiro ano do ensino fundamental sem que estejam alfabetizadas e que a maior parte dos jovens que concluem o ensino médio sequer sinta-se capaz de fazer o ENEM. Resta evidente que os investimentos continuam sendo insuficientes, sendo necessário aplicar mais e melhor em educação, nunca menos. A proposta de reduzir recursos para essa área é um contrassenso e não há nada que justifique tal desatino. Oferecer como justificativa tirar da educação para dar para a saúde é insustentável, considerando as fragilidades de uma e de outra. Ambas são importantes e colocá-las em oposição não passa de oportunismo político.

Registre-se que o governo Tarcísio não é o único a atacar as bases para o progresso educacional, cultural, científico e tecnológico. Contudo, pode vir a ser o mais letal. Já no ano 2000, uma CPI na Assembleia Legislativa comprovava que a destinação obrigatória dos 30%  previstos na Constituição estadual nunca eram respeitados. De lá para cá, ano após ano, governantes paulistas têm se valido de expedientes para burlar a Lei fingindo respeitá-la. Para “chegar” ao piso mínimo, afrontam decisão do próprio STF ao computar ilegalmente despesas com professores inativos e já cometeram o absurdo de contabilizar gastos com alimentação de animais do jardim zoológico como se fossem recursos para o ensino público. Assim, bilhões de reais deixaram de ser investidos e os resultados desse desfalque são bem conhecidos. Nos recentes resultados do PISA o Brasil permanece nas últimas posições, sendo que 73% dos jovens brasileiros com 15 anos não aprenderam o mínimo esperado em matemática e 50% nem o mínimo em leitura. Um desastre que pode se tornar ainda maior com o corte agora proposto pelo governo do Estado mais rico e populoso do Brasil.

Setores atrasados de nossas elites se recusam a perceber que a educação é a base de qualquer projeto de nação democrática, socialmente justa e ambientalmente sustentável. Acreditam que basta uma educação pobre para os pobres e fazem disso uma estratégia de dominação e manutenção de privilégios. É uma visão míope e mesquinha. O fato é que ainda serão necessários muitos anos de esforços ingentes para alcançarmos os padrões exigidos por um mundo em que conhecimento é o bem mais precioso. Calcula-se que o investimento per capta em um estudante paulista de nível básico seja apenas 54% da média aplicada pelos países desenvolvidos reunidos na OCDE onde, aliás, muitos dos problemas de infraestrutura já foram superados há muito tempo. Portanto, é espantoso que aqui queiram investir menos ainda.

O enfrentamento desse quadro depende de mobilização e vontade política. Por isso é preciso rejeitar essa PEC que, se for aprovada, tornará definitiva  a redução do piso constitucional para o ensino público. É fundamental resistir a  mais esse ataque, respeitar os desígnios  dos constituintes de 1989, compreender o poder estratégico da educação para o desenvolvimento nacional e arquivar a proposta na pasta das iniciativas mais tristes da história de São Paulo e do Brasil.

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Cesar Callegari é sociólogo. Foi Secretário da Educação Básica do MEC (Gov. Dilma), Secretário da Educação do Município de São Paulo (Gov. Haddad) e Deputado Estadual na Assembleia paulista onde presidiu a CPI da Educação no ano 2000.