Cesar Callegari
Abril de 2022

Este breve relato de uma experiência pessoal serve para realçar as diferenças de postura entre governos e governantes quanto ao patrimônio estratégico nacional.

Era o ano de 2003. Primeiro ano do primeiro governo Lula.

Na época eu exercia do cargo de Secretário Executivo do Ministério da Ciência e Tecnologia -MCTI.

Nessa condição, por vezes eu participava da Câmara Setorial de Infraestrutura, integrada por vários Ministros de Estado que se reuniam periodicamente com o Presidente da República.

Numa dessas reuniões, em novembro daquele ano, orientado pelo Ministro Roberto Amaral, levei comigo pastas recheadas de documentos técnicos com o objetivo único de convencer o governo a mobilizar a NUCLEP, uma estatal subordinada ao MCTI, para que ela participasse do programa de construção de plataformas marítimas de exploração de petróleo. Isso foi antes das descobertas das jazidas do pré-sal. Nós sabíamos que nossa proposta iria enfrentar dificuldades e que a minha missão não seria fácil.  A empresa fora constituída ainda na época dos militares para apoiar a construção das usinas nucleares de Angra. Localizada no Rio de Janeiro, a NUCLEP estava com grande capacidade ociosa, embora contasse com um formidável parque industrial dotado de um impressionante cabedal técnico e tecnológico para fabricação e montagem de grandes estruturas de alta complexidade. A ideia era que a estatal passasse a ser fornecedora preferencial da Petrobras.

Reunidos ao redor da grande mesa redonda no gabinete presidencial, chegou a minha vez de falar. Decidi me concentrar nos olhos do Presidente Lula. Único não-ministro entre ministros, resolvi me dirigir somente ao chefe. Comecei a expor meus argumentos sem desviar o olhar para mais ninguém. Nem mesmo para o poderoso e onipresente José Dirceu, Ministro Chefe da Casa Civil, que secretariava essas reuniões. E tampouco para Dilma, então Ministra das Minas e Energia, à qual a Petrobras era subordinada. Contei a história da NUCLEP, seu portfólio de realizações, sua notável capacidade de engenharia e construção e sua situação de ociosidade herdada do governo FHC. Num dado momento a Ministra me interrompeu.  Dilma começou dizendo que aquela proposta não tinha nenhum sentido. Que os assuntos relacionados ao petróleo eram coisas muito complicadas e que não admitiam improvisações. E continuou acrescentando que já havia contratos internacionais para a montagem das plataformas. Para ela, aquela conversa devia parar por ali. Enquanto ela falava, eu continuava firme, sem tirar os olhos do Presidente.

De repente,  Lula cortou Dilma: “ Dilma, está aqui o Callegari mostrando que o Brasil tem uma estatal que pode fazer o serviço, com trabalhador brasileiro e engenharia nacional e eu lá quero saber de contratos com japoneses ?  Olha aqui, presta atenção: se tem uma empresa pública brasileira que pode fazer, ela vai fazer. Vai participar da construção das plataformas. Está decidido. Essa tal…como chama, Callegari?…essa tal NUCLEP vai participar.” Lula se virou para José Dirceu, para os outros ministros e arrematou: “Está decidido!”

Saí da reunião satisfeito, embora um tanto cético se a decisão do Presidente iria, de fato,   ser implementada. Afinal, sabemos que decisões de governo podem mudar de acordo com as circunstâncias do momento. Deixei o Ministério no ano seguinte e perdi contato com esse assunto.

Muitos anos depois, assisti a uma reportagem que acompanhava a Presidente Dilma, já no seu segundo mandato, inaugurando mais uma plataforma marítima da Petrobras na bacia de Campos, RJ. Vestida de macacão alaranjado, capacete azul e cercada por operários e engenheiros, Dilma discursava com orgulho registrando que aquela gigantesca obra havia sido construída no Brasil, por brasileiros, com tecnologia nacional. Para minha total surpresa, ela fez questão de dizer que aquilo só fora possível graças a uma decisão do Presidente Lula, anos atrás. Mais surpresa: no discurso, ela resumiu detalhes sobre onde, quando e como aquela decisão havia sido tomada. Naturalmente, ela não fez menção a mim e não teria motivos para fazê-lo dada a minha insignificância no contexto. Fiquei impressionado com a franqueza e a generosidade da Presidente. E me senti feliz por ter contribuído com tudo aquilo, embora que modestamente.

Lembro agora dessa passagem porque ela evidencia o contraste entre governantes progressistas que amam o Brasil e um governo antinacional, antipopular e antidemocrático. Entre posturas éticas e comportamentos canalhas e bestiais. Bolsonaro, ao querer privatizar a Petrobras, o Banco do Brasil, a Eletrobrás, liquidar o Centro Nacional de Tecnologia Avançada -CEITEC- e tantas outras empresas públicas nacionais, pretende alienar a soberania do país. Ao cortar recursos da educação, da ciência, da cultura e de proteção do nosso patrimônio ambiental, Bolsonaro e as forças retrógradas que o sustentam vêm patrocinando um sistemático desmonte daquilo que ainda resta do nosso potencial estratégico. Arruína nosso presente e compromete nosso futuro como nação desenvolvida, democrática e socialmente justa.

Mais do que orgulho, é preciso respeitar o que o Brasil e os brasileiros ousaram construir. E impedir que essa destruição continue. Um projeto nacional-desenvolvimentista é possível e necessário. Que seja democrático, inclusivo, aberto ao mundo, mas sem abdicar de nossa soberania. Por isso, é preciso lutar e uma coisa é certa: só não vence quem desiste da luta antes dela começar, ou quem se abate e abandona a batalha no meio da refrega.

Termino lembrando João Cabral de Melo Neto: ‘melhor faz quem luta com as mãos do que quem abandona as mãos para trás’. A luta continua!