2018

Cesar Callegari

No final de 2017 o Conselho Nacional de Educação aprovou a norma brasileira que institui a Base Nacional Comum Curricular, a BNCC. Ela passa a ser referência obrigatória para a elaboração ou revisão das propostas curriculares das escolas públicas e privadas, tornando-se o principal parâmetro para os cursos de formação inicial e continuada de professores, para a elaboração de livros e materiais didáticos e para os sistemas de avaliação. Embora faça referências a toda a Educação Básica, esta BNCC diz respeito especificamente à Educação Infantil e ao Ensino Fundamental, ficando a base relativa ao Ensino Médio para ser trabalhada em seguida.

A criação de uma BNCC é considerada estratégica para o enfrentamento dos principais problemas educacionais do Brasil, a ponto de se constituir em obrigação legal. Tanto é, que a primeira estratégia relacionada ao atingimento da meta nº 7 do PNE – Plano Nacional de Educação – fomentar a qualidade da educação básica… – indica “a necessidade de se estabelecer e implantar, mediante pactuação interfederativa, diretrizes pedagógicas para a educação básica e a base nacional dos currículos, com direitos e objetivos de aprendizagem e desenvolvimento dos(as) alunos(as) para cada ano do ensino fundamental e médio, respeitada a diversidade regional, estadual e local”. De fato, há muito tempo, desde o Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova, de 1932, já se afigurava um diagnóstico que se tornaria recorrente até os dias de hoje: a educação brasileira é fragmentária e desarticulada. Ao pautar o tema, a Lei do PNE orienta para o enfrentamento desse problema, se ancora na Constituição Federal e dá consequência ao comando contido no Artigo 26 da LDB que estabelece que “os currículos da educação infantil, do ensino fundamental e do ensino médio devem ter base nacional comum, a ser complementada, em cada sistema de ensino e estabelecimento escolar, por uma parte diversificada exigida pelas características regionais e locais da sociedade, da cultura, da economia e dos educandos”. Importante notar que com o PNE, pela primeira vez em documentos legais, aparece a expressão “direitos e objetivos de aprendizagem e desenvolvimento”, em substituição a “expectativas de aprendizagem”, que até então vinha sendo empregada. A novidade se baseia num conceito relevante: a educação de qualidade é um direito dos sujeitos, portanto subjetivo, e não mais uma possibilidade (expectativa) a eles relacionada. Novidade, aliás, inaugurada por ocasião do Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa – PNAIC -, de 2012, que até há pouco vinha sendo a mais recente experiência brasileira de uma base curricular nacional, no caso, voltada para o ciclo composto pelos três primeiros anos do ensino fundamental.

À guisa de orientações curriculares, existem documentos basilares como as recentes Diretrizes Curriculares Nacionais e ainda os onipresentes PCNs – Parâmetros Curriculares Nacionais – que datam de 1997. Mas eles não têm sido capazes de exercer plenamente um papel de organizador do Sistema Nacional de Educação. Nos últimos 10 anos o Conselho Nacional de Educação realizou um vigoroso esforço e formulou uma série de diretrizes curriculares e operacionais, criando novas normas ou atualizando anteriores. Entre elas, podem-se destacar as Diretrizes Curriculares Nacionais Gerais da Educação Básica (Parecer CNE/CEB nº7de 2010 e Resolução nº 4, de 13 de junho de 2010), as Diretrizes Curriculares para a Educação Infantil (Parecer CNE/CEB nº 20/2009 e Resolução nº 5, de 17 de dezembro de 2009), as Diretrizes Curriculares para o Ensino Fundamental de Nove Anos (Parecer CNE/CEB nº 11/2010 e Resolução nº 7, de 14 de dezembro de 2010) e as Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio (Parecer CNE/CEB nº4 /2011 e Resolução nº 2, de 30 de janeiro de 2012). O resultado desse trabalho é hoje matéria originária do que foi produzido como Base Nacional Curricular Comum. Além disso, é preciso registrar, elogiando, o esforço de algumas redes e sistemas de ensino que lograram construir referenciais curriculares próprios e, a partir deles, organizaram a produção de materiais, sistemas avaliativos e a formação de professores. Esses casos mostram, de maneira convincente, que todos os progressos significativos experimentados pela educação básica brasileira nos últimos 10 anos, sempre estiveram associados a alguma forma de inovação curricular. Alguns exemplos: o Ceará, quanto à alfabetização na idade adequada; Minas Gerais e na Cidade de São Paulo, no ensino fundamental; Pernambuco e Rio de Janeiro, com relação ao ensino médio. São apenas alguns casos, entre outros possíveis, de reformas educacionais promissoras porque foram capazes de articular ao currículo uma série de outras mudanças. Contudo, nas redes púbicas esses casos são exceção a confirmar regra. Do que se conclui que, sem currículo como base, não pode haver avanços consistentes.

Na falta de propostas orientadoras mais claras e objetivas, muitos educadores e escolas não conseguem ter uma visão nítida de um projeto curricular e poucos conseguem reunir condições adequadas para colocar em prática o seu potencial criativo, inovador e encantador, tão necessários para estimular e garantir a aprendizagem dos estudantes. Sem referenciais suficientes e atuando de forma dispersa em meio a baixas condições de trabalho, muitos desses profissionais se sentem isolados em suas salas de aula e não se consideram partícipes de um projeto pedagógico coletivo, não sabem como superar suas deficiências formativas, não conseguem aproveitar todas as possibilidades do material didático à sua disposição e desconhecem ou não sabem como lidar com os resultados das avaliações. Portanto, heroicamente, acabam fazendo só o que sabem e o que podem, nem sempre o que é necessário.

O resultado dessas deficiências aí está: mais da metade das crianças brasileiras ainda não sabe ler, escrever e contar depois de três anos frequentando escola, quando todos deveriam estar alfabetizados. Apenas 54% dos jovens conseguem concluir o ensino médio com 19 anos e os que conseguem chegar a esse ponto carregam severos déficits em relação aos conhecimentos esperados e necessários para a continuidade dos estudos ou para sua inserção no mundo do trabalho.

Diante desse quadro crítico e crônico, a existência uma base curricular para a equidade passa a ser considerada estratégica. Uma plataforma mediante a qual os currículos específicos e planos de trabalho de professores, escolas e redes de ensino possam ser elaborados. Portanto, uma base para a criação autoral e colaborativa. Necessariamente mais detalhada do que aquilo que hoje existe em termos de diretrizes para o planejamento e operacionalização da ação educativa no ambiente escolar, a BNCC deve ser necessariamente observada pelos Estados e Municípios e ser tomada como referência obrigatória para a articulação de outros eixos concorrentes para uma educação com qualidade.

Entre os eixos estruturantes concorrentes está a produção de livros e materiais didáticos que ainda apresentam significativos desníveis de qualidade quanto à profundidade de conteúdos, à adequação de suportes tecnológicos e quanto à abordagem metodológica. São os professores que escolhem e encomendam esses livros e materiais, é fato. Porém esses profissionais não decidem com os mesmos elementos de análise e informação, disso resultando assimetrias inaceitáveis quanto ao tipo e qualidade do conhecimento aos quais os alunos têm acesso. Tendo uma BNCC como referencial, essas escolhas podem se tornar mais objetivas e menos desniveladas.

Outro eixo concorrente se refere aos programas de formação inicial de professores. É consenso que entre as principais causas da baixa qualidade da educação do país está o deficiente sistema de formação profissional para o setor. Os diagnósticos convergem apontando que a maior parte dos cursos de licenciatura não forma profissionais suficientemente preparados para enfrentar os desafios do que ensinar e como ensinar. Trata-se de um ambiente formativo cercado de problemas, entre eles as deficiências carregadas pelos estudantes (futuros professores) desde a educação básica, a baixa valorização social e salarial do seu mercado de trabalho, condutas meramente mercantis e descomprometidas com a qualidade de algumas instituições formadoras e a estrutura muitas vezes arcaica, descontextualizada, distante da prática e estritamente disciplinar de muitos cursos superiores. A BNCC deverá levar a uma revisão das diretrizes curriculares das licenciaturas bem como dos sistemas de avaliação e regulação desses cursos, com vantagens para o sistema educacional.

Ainda no que diz respeito à formação profissional, muitos dos professores já formados que estão em atividade são portadores de severas lacunas. Em resposta a esse quadro, todos os anos as secretarias de educação, sindicatos, instituições sérias (e algumas não tão sérias que integram a chamada ”indústria de certificados”), organizam uma plêiade de programas de formação continuada e atualização, mobilizando milhões de educadores e bilhões em recursos financeiros. Contudo, no mais das vezes, são ações dispersas e fragmentadas, com baixa repercussão na qualidade de ensino e da aprendizagem. Esses programas podem ser amplamente beneficiados pela existência da BNCC, implicando em atividades formativas mais focadas, objetivas e coerentes com relação aos desafios de implementação do currículo e do projeto educacional da escola.

Quanto ao eixo das avaliações, a BNCC passa a ser (até que enfim), um parâmetro para que elas sejam concebidas, efetuadas e interpretadas. E delas derivem todas as consequências para que se monitore a realização da aprendizagem como direito e do ensino como dever. Pois não basta declarar que a educação de qualidade é um direito de todos. É preciso explicitar o que isso significa. Direito é uma construção social e, como tal, necessita ser enunciado. Por exemplo, é preciso enunciar que ao final do segundo ano do ensino fundamental toda criança brasileira, pobre ou rica, preta ou branca, catarinense ou alagoana, todas têm o direito de saber ler e identificar o assunto em um texto simples, bem como a finalidade de um convite ou de um bilhete. Elas precisam saber escrever pequenos textos narrativos, ainda que com erros de ortografia, concordância e pontuação. Já devem poder fazer a adição de duas parcelas e realizar operações de subtração usando números naturais com até dois algarismos. Porque, se não tiverem adquirido esses e outros conhecimentos e habilidades, certamente vão acumular déficits e dificuldades ao longo de toda a sua vida, acentuando desvantagens pré-existentes ou adquirindo novas. Ora, o conhecimento sobre o desempenho da escola, órgãos do Estado e da família em face do direito do aluno ao aprendizado é simplesmente indispensável. Assim como é essencial que ele, estudante, possa analisar os resultados do seu próprio esforço em aprender e se desenvolver. Pergunta-se, então, com base em quais parâmetros uma boa avaliação diagnóstica e formativa pode ser feita senão tendo como referência uma BNCC?

A construção de referenciais curriculares nacionais vem sendo considerada determinante para os avanços educacionais em várias partes do mundo. Assim é que países como Canadá, Estados Unidos, Cuba, Austrália, Chile, Portugal, Inglaterra e Coréia do Sul passaram recentemente pelo processo de definir um núcleo comum para todo o sistema de educação básica. Não se trata de copiar o que eles fizeram. Porém, aprender com suas experiências, erros e acertos parece útil, lógico e necessário. Além disso, no estágio atual de globalização da economia e da cultura, é imprescindível que proposições curriculares brasileiras levem em conta os avanços científicos e tecnológicos em todas as áreas e em todas as partes, incluindo a educação. Da mesma forma, considerem os desafios, inquietações e possibilidades de uma juventude em rede planetária, as mutações nos paradigmas éticos e estéticos da contemporaneidade, os velhos dogmas em cheque e as mistificações em voga, a extraordinária herança de antigas e novas civilizações, bem como os valores decadentes e ideias emergentes em alta velocidade e em escala mundial. Em outras palavras: em que pesem as condições ditadas pelas mazelas da história e da atual conjuntura nacional, é preciso pensar grande para, a um só tempo, enfrentar o passado, lidar com o presente e construir o futuro.

No Brasil, desde o primeiro semestre de 2015, o MEC, por força de Lei e vontade política, passou a trabalhar na elaboração de uma BNCC. Uma primeira versão foi submetida a consulta publica nacional que gerou centenas de milhares de contribuições. Disso resultou uma segunda versão que, por sua vez, foi discutida em seminários organizados por secretários de educação em todos os estados brasileiros. Desse processo foi elaborada uma terceira versão contendo propostas detalhadas para o Ensino Fundamental e para a Educação Infantil, ficando para depois a apresentação de uma proposta para o Ensino Médio. Essa terceira versão preparada pelo MEC foi submetida ao Conselho Nacional de Educação em abril de 2017. O CNE organizou cinco audiências Públicas nacionais, uma em cada região do Brasil, recebeu e analisou centenas de documentos, promoveu reuniões e debates complementares e, por fim, aprovou em dezembro de 2017, por maioria de votos, a primeira Base Nacional Comum Curricular da história da educação brasileira.

Tudo isso aconteceu não sem disputas acirradas numa conjuntura política nacional conturbada, com uma sociedade fracionada e com instituições fragilizadas. Manifestaram-se aqueles que defendem e os que rechaçam a própria ideia de base curricular por temerem que ela seja uma lista de conteúdos obrigatórios e funcione como uma espécie de “camisa de força” autoritária sobre a liberdade e a autonomia dos docentes e suas escolas. Houve expressões de resignação passiva e de inconformismo ativo; dos críticos e dos propositivos; de tentativas de interdição do debate aos avanços das discussões de forma democrática. Setores representativos de interesses os mais diversos disputaram (e continuarão a disputar) por espaço, ideias e conteúdos. Confrontos ainda maiores poderão surgir mais à frente já que, como se sabe, toda proposta curricular contém elementos do projeto de nação onde valores, sonhos e ambições nem sempre são convergentes e, na verdade, frequentemente são conflitantes.

O resultado é que a BNCC inicialmente proposta pelo MEC sofreu várias mudanças, seja em consequência de propostas e pressões da sociedade, seja pelo trabalho dos conselheiros. É fato, também, que o produto resultante desse processo está longe de ser o ideal. Mas o positivo é que a obra começou a ser feita e está consubstanciada no Parecer CNE/CP nº 15/2017, na Resolução CNE/CP nº 2/2017 publicada no Diário Oficial da União em 22/12/2017 e no anexo Documento Técnico da BNCC editado pelo MEC, tudo isso a ser obrigatoriamente revisto daqui a 7 anos. Sua concretização, entretanto, se dará no processo de implementação quando a BNCC, como referencial, passar a ser considerada na elaboração ou revisão das propostas curriculares das escolas e redes de escolas a partir do trabalho crítico e criativo dos professores e demais profissionais da educação; quando ela passar a ser tomada como referência na elaboração e seleção de livros e materiais didáticos; quando passar a orientar as diretrizes curriculares dos cursos de formação inicial e continuada dos professores; quando passar a constituir parâmetro dos sistemas de avaliação; e quando for capaz de pautar o regime de colaboração envolvendo os agentes educacionais em todos os níveis. Todo esse movimento começa agora e dele todos devem participar.

Legado da maior importância para a atual e para as futuras gerações, essa base curricular necessita ter legitimidade. Parte significativa dessa legitimidade, contudo, vai depender da amplitude, representatividade e intensidade de participação que efetivamente acontecerá no processo de implementação. É fundamental que se considere o que já vem sendo construído e praticado no país pela Rede Federal, Estados, Municípios e suas escolas, públicas e privadas, e que se respeite a sua rica diversidade. Como já se disse aqui, muita coisa interessante vem sendo elaborada, testada, reelaborada e aperfeiçoada por educadores e instituições educativas, universidades, institutos de pesquisa e organizações não governamentais, seja no Brasil, seja no exterior. Essa riqueza precisa ser aproveitada com o cuidado de não se reduzir tudo a um raso denominador comum, a um currículo mínimo, muito menos a um currículo único. Claro que são muitas as dificuldades que cercam o sistema educacional. Mas é preciso evitar propostas agachadas sob a régua de nossas atuais precariedades e limites, bem como é necessário combater ideias que preconizam conteúdos meramente instrumentais e utilitários destinados a adestrar meninos e meninas nas técnicas de ler, escrever e contar, como se isso bastasse para o exercício de uma cidadania contemporânea.

Ajudar a superar a atual fragmentação curricular é um dos potenciais de uma BNCC. Não há aprendizado significativo de língua sem história e arte; não se aprende física sem filosofia e matemática; química, sem geografia. Uma coisa se liga à outra, e vice e versa, o conjunto dando significado às partes. Em resumo: é preciso cuidar para que essa base curricular promova a integração e articulação entre as diferentes áreas do conhecimento e, com isso, o desenvolvimento do pensamento crítico, dos valores e das atitudes demandados nessa quadra da história da humanidade.

Finalmente, um dos cuidados mais importantes: as normas instituidoras dessa Base devem funcionar como um escudo defletor contra dirigismos e preconceitos de qualquer espécie, ainda mais em tempos de fundamentalismos e intolerâncias. Poderá avançar ao sugerir novas formas de organização do tempo, do espaço e do trabalho escolar. Mas haverá de preservar a liberdade de escolha de concepções, abordagens, métodos e estratégias de ensino por parte dos educadores e suas escolas, liberdade que é o esteio da invenção e reinvenção autoral, crítica e criativa do currículo e da própria educação.

De tudo, o que é mais relevante: na execução da ambiciosa tarefa de propor e implementar uma base curricular nacional comum, o país tem uma rara oportunidade de avançar no combate às suas iniquidades, seu atraso e seu subdesenvolvimento econômico, político e cultural, na ousadia de um Brasil verdadeiramente democrático, desenvolvido e socialmente justo.

Cesar Callegari é sociólogo e membro do Conselho Nacional de Educação onde preside a Comissão da Base Nacional Comum Curricular. Foi Secretário de Educação Básica do MEC, Secretário de Educação do Município de São Paulo, Secretário Executivo do Ministério da Ciência e Tecnologia e Diretor da Faculdade SESI-SP de Educação. É autor de vários trabalhos publicados na área da educação, entre eles “O Fundeb”, Ed. Aquariana, 6ª ed., 2011 e “Ensino Fundamental: a Municipalização Induzida”, Ed. Senac, 1997. É Presidente do Instituto Brasileiro de Sociologia Aplicada – IBSA. (cesarcallegari@uol.com.br)