Navegadores a vela dizem que o melhor vento não é o vento de popa, aquele que vem por traz e apenas empurra o barco. Bom mesmo, ensinam, é o vento de través, aquele que atravessa a vela, que a torna prenhe de potência e faz o barco avançar com velocidade e firmeza. Para eles, às vezes nem importa muito para onde o vento os leva. O que interessa é a plenitude de se deixarem atravessar pelos fluxos de ar e mar e as descobertas surpreendentes que esse movimento traz.

Assim parece o conhecimento criativo: ele se torna conhecimento pleno de significado e potência, não quando o guardamos, mas quando ele nos atravessa, quando a informação se torna um elemento que nos inspira e faz pensar, produz sentido, contamina, afeta e gera movimento.

Bons professores são como navegadores. Eles sabem que aprendemos quando nos deixamos contaminar pelos elementos, nos permitimos surpreender e quando criamos e refletimos sobre nossas criações. Imaginam situações que provoquem seus alunos a vivenciarem o processo criativo. E costumam inventar estratégias que induzem à descoberta até mesmo das teorias e conceitos mais estabelecidos, de forma que sejam inaugurais a cada vez que são apresentados.

Essa descoberta renovada para o professor é o processo de criação original para o estudante. Compartilhar o florescer do conhecimento traz a cumplicidade que deve ser própria das relações na escola. Uma cumplicidade questionante em face ao desconhecido e ao imponderável que faz da aprendizagem algo significativo e dinâmico: uma travessia.

Alguns de nós que participamos ativamente da elaboração da nova Base Nacional Comum Curricular sempre sustentamos essa visão. Imaginamos a BNCC como uma espécie de “sopro de possibilidades” para o processo crítico e criativo de professores, seus estudantes e suas escolas. Algo que, como o vento, possa atravessá-los e inspirá-los nas descobertas do conhecimento. Por isso, o tempo todo no texto aprovado, insistimos em afirmar que Base não é currículo. Não é currículo único, tampouco currículo mínimo. E, assim, jamais deve ser tomada como receita pronta e modelo obrigatório.

Desde as suas origens, até a sua inclusão na Lei do Plano Nacional de Educação de 2014, a Base sempre foi pensada como uma enunciação dos direitos e objetivos de aprendizagem e desenvolvimento escolar das crianças jovens e adultos brasileiros. Portanto, também pensada como expressão de deveres do Estado e da Sociedade para com a educação. Uma base que viesse a favorecer a equidade, com reflexos positivos na construção dos currículos escolares, na formação de professores, na produção de materiais didáticos, nas avalições e na própria articulação de um sistema nacional de educação.

Enfim: a BNCC foi originalmente concebida para ajudar a superar as dificuldades históricas enfrentadas pela educação brasileira. Entre elas, a falta de insumos mais claros e objetivos para que educadores e escolas consigam produzir um projeto curricular capaz de colocar em prática o seu potencial criativo, inovador e encantador, tão necessários para estimular e garantir a aprendizagem dos estudantes.

Sabemos que muitos profissionais da educação sentem a falta de referenciais suficientes para desenvolver suas atividades. Atuando de forma dispersa e em meio a precárias condições de trabalho, frequentemente se percebem isolados em suas salas de aula e, com razão, não se consideram partícipes de um projeto pedagógico coletivo. Não encontram meios de superar suas deficiências formativas, não conseguem aproveitar todas as possibilidades do material didático à sua disposição e desconhecem ou não sabem como lidar com os resultados das avaliações. Portanto, sem “vento” suficiente e sem “velas” adequadas que possam manejar, heroicamente acabam fazendo o que sabem e o que podem, nem sempre o que é necessário.

Isso precisa mudar. Estudantes são portadores de direitos de aprendizagem e grande parte desses direitos estão enunciados na BNCC. Esses direitos evocam os nossos deveres de proporcionar o necessário e não apenas o possível. Ao explicitar referenciais na forma de insumos ao processo criativo e autoral, a Base pode representar um estímulo à uma consciência mais profunda dos educadores, ao seu empoderamento como profissionais e, assim, abrir uma real perspectiva de enfrentamento dos problemas educacionais brasileiros.

No final de 2017 a BNCC do Ensino Fundamental e da Educação Infantil foi aprovada pelo Conselho Nacional de Educação, tornando-se norma nacional a ser obrigatoriamente observada pelas escolas públicas e privadas de todo o Brasil. Muitas delas já começaram o trabalho de revisão de suas propostas curriculares. A nova Base já orienta editais para a compra de livros didáticos e avaliações de larga escala, como a Prova Brasil, já estão sendo preparadas tomando a BNCC como referência.

A BNCC do Ensino Médio só foi aprovada no final de 2018, com muitos problemas e sob fortes críticas de amplos setores da comunidade educacional brasileira que a considera reducionista, excludente, incompleta e incapaz de ajudar a superação dos graves problemas dessa etapa da educação básica. Seus defeitos são graves. Por exemplo, a ênfase dada apenas em matemática e língua portuguesa em detrimento das demais disciplinas. Até as pedras sabem que essas são matérias importantes, mas que não são as únicas. E que construção de um pensamento crítico e criativo requer capacidade de contextualização com o conhecimento articulado de todas as áreas e seus componentes. Em todo caso e apesar de tudo, da Educação Infantil até o Ensino Médio, o Brasil já tem a sua BNCC.

Contudo, sobre a Base, estamos diante de grandes desafios. Já se percebem sérios problemas advindos da sua implementação. Muitos daqueles que hoje atuam para colocar em prática os dispositivos da Base estão descuidando de um aspecto fundamental: a participação ativa dos professores e o envolvimento efetivo das escolas. Sem eles, o processo criativo imaginado na gênese da BNCC pode se perder e a Base vir a se transformar numa espécie de “camisa de força”, aquele currículo único que sempre combatemos, imposto ao sistema e que pode sufocar a diversidade e a riqueza de nossa realidade educacional. Assusta perceber, aqui e ali, o uso abusivo da expressão “alinhamento à Base” como uma forma de submissão da escola a um modelo curricular único universal. O “vento inspirador” se transformando em “tempestade arrasadora” que destrói identidades e singularidades. Isso não pode acontecer e os educadores devem reagir fortemente contra qualquer iniciativa de alinhamento e imposição usurpadora de sua potencia autoral.

Deve-se insistir na visão de que o exercício do processo criativo é inerente ao processo de ensino e aprendizagem de qualidade. É importante defender os espaços de autonomia e afastar qualquer tipo de centralismo autoritário, raso e meramente utilitarista da educação. É preciso resistir. Uma resistência ativa que signifique assumir a tarefa de propor e defender propostas curriculares e projetos pedagógicos que sejam a expressão do pensamento colaborativo e das escolhas próprias dos educadores no exercício de sua autonomia.

Não é fácil, sabemos. Fazer educação nos tempos de hoje exige muito mais do que armazenar e transmitir informações. Os novos tempos cobram de professores e escolas a capacidade de imaginar e desenvolver propostas curriculares que superem a costumeira fragmentação disciplinar na esteira de uma visão articulada, interdisciplinar e transdisciplinar. E mais: esses novos tempos exigem dos educadores a coragem e a disposição para uma participação ativa nos processos políticos e sociais em diferentes planos, especialmente quando eles trazem consequências concretas ao sistema educacional e ao fazer pedagógico. Essa é a luta necessária em defesa de uma educação que nos atravesse e a todos -professores, estudantes e suas famílias- e a todos nós inspire na construção de uma sociedade global democrática, humanista, plural, desenvolvida, sustentável e socialmente justa.

Lembrando Graciliano Ramos, ‘melhor faz quem luta com as mãos do que aquele que abandona as mãos para traz’.

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Cesar Callegari é sociólogo, professor e consultor educacional. É presidente do Instituto Brasileiro de Sociologia Aplicada- IBSA. Foi membro o Conselho Nacional de Educação onde presidiu a Comissão de Elaboração da Base Nacional Comum Curricular. Foi Secretário de Educação Básica do MEC e Secretário de Educação do Município de São Paulo, entre outros cargos ocupados. É autor de várias obras sobre educação, ciência e cultura. www.ibsa.org.br