Dizemos que escola é um território dos afetos. De fato, todo processo de aprendizagem e desenvolvimento organizado nas escolas é resultado de múltiplos afetos decorrentes das interações das crianças e jovens entre eles, deles com seus professores, dos professores entre si, todos em conexão com suas famílias e com o ambiente físico e social.
Muito além dos conteúdos didáticos, é a experimentação constante desses afetos recíprocos que permite o desenvolvimento de conhecimentos e habilidades. É no contato direto, “sentindo o hálito”, que se testam e se constroem as noções de limites e possibilidades criativas, além de valores e atitudes fundamentais para a vida em sociedade. Portanto, para ser plena e integral, a educação escolar precisa ser presencial, colaborativa, não domiciliar, sobretudo quando pensamos sobre as etapas infantil, fundamental e média.
No Brasil, nenhuma instituição do Estado é tão presente e capilarizada quanto a escola. Mesmo onde não há posto de saúde, prefeitura, água encanada e luz elétrica, até quando ali não há sequer uma cidade, lá encontramos uma escola. São 190 mil estabelecimentos públicos onde trabalham dois milhões de professores lecionando para 48 milhões de alunos. Uma instituição abrangente e, ao mesmo tempo, excludente. Sim, porque sempre que a educação escolar é oferecida de maneira insuficiente, irregular e com baixa qualidade, ocorre a exclusão social como essa que, historicamente, vem condenando milhões de brasileiros a uma espécie de “cidadania precária”. Isso precisa mudar e depende de consciência política e mobilização.
A atual pandemia vem aprofundando nosso quadro crônico de desigualdades e exclusão. Como temos visto, a interrupção das atividades presenciais nas escolas vem afetando de modo diferente os distintos grupos sociais. Setores mais vulneráveis têm sido duramente atingidos, não só pela dificuldade de acesso a meios remotos de contato com a escola, mas também pelas formas mais severas do flagelo provocado pela crise econômica, o desemprego, a fome, a violência e pelas perdas provocadas pela doença.
Portanto, refletir e agir sobre a educação em tempos de pandemia implica em dar atenção especial a essas diferenças, trabalhando duramente para mitigar as desigualdades. Uma educação com equidade é aquela que exige de cada um, segundo suas possibilidades; e provê a cada um, de acordo com suas necessidades. Deixemos de lado as noções de alunado, turma ou classe como categorias sociológicas ou organizacionais. Estamos falando de seres humanos e a atenção deve ser dada um por um. Eis aqui um desafio radical e sensível que agora se impõe com mais força aos educadores e gestores educacionais. Nunca foi tão importante mobilizar os meios adequados para a escuta, acolhida e cuidados com a integridade física e mental de todos e de cada um sob a nossa responsabilidade. Nesse sentido, além de uma intensa articulação com os sistemas de saúde, assistência social, segurança alimentar e de proteção individual e coletiva, é indispensável fortalecer a vinculação dos profissionais da educação com as famílias, núcleo basilar de todo sistema social. Já não basta apenas ficar “à disposição de quem precisar” ou simplesmente tentar supor os dramas familiares que estão por traz das dificuldades das crianças. Mais do que antes, se faz necessária uma atitude proativa em busca do diálogo e da cooperação com os pais e responsáveis. Tomar a iniciativa, ir em sua direção, envolvê-los na elaboração de estratégias e soluções, conscientes de que, sem eles, não poderemos compreender e superar as múltiplas faces da calamidade que nos aflige. Não é trabalho fácil, as condições são difíceis e o país precisa fazer um grande esforço para melhorá-las.
Como sabemos, a escola tem como objetivo maior o desenvolvimento integral da pessoa humana. Na pandemia todos vêm sendo atingidos e é imprescindível, em primeiro lugar, defender a vida. Mas não só. A peste, a necessária suspensão das atividades presenciais e o agravamento das condições do sistema escolar não podem, de maneira alguma, justificar negligência, rebaixamento ou supressão dos direitos educacionais dos estudantes. Não custa enfatizar que a Lei brasileira estabelece que crianças, jovens e adultos são sujeitos de direitos e eles não precisam reivindicá-los para que a sociedade se desdobre para garanti-los.
Para isso, é fundamental compreender e zelar por esses direitos, assim como é necessário um esforço de planejamento e replanejamento da ação educativa a fim de que eles sejam assegurados. Iludem-se aqueles que ainda acham que, apesar de tudo o que estamos passando, um processo de retomada das atividades presenciais possa começar do ponto em que paramos quando o “tsunami” nos atingiu no início de 2020. Os próximos muitos anos devem ser repensados sem perder o norte dos objetivos educacionais. Desde a formação e apoio aos educadores até a revisão dos currículos, projetos pedagógicos e planos de aula, tudo precisa ser reavaliado. Levando em conta não só as feridas abertas e suas cicatrizes, mas também o desafio de conceber e articular novos tempos, meios e espaços destinados a garantir os direitos individuais e coletivos. Nesse empenho, talvez seja possível reinventar a educação para melhor.
Educação escolar implica em intencionalidade. Nos últimos anos, o Brasil realizou um grande esforço para sistematizar e enunciar os direitos de aprendizagem e desenvolvimento das crianças, jovens e adultos. A Base Nacional Comum Curricular, aprovada em documentos normativos em 2017 e 2018 pelo Conselho Nacional de Educação, constitui um referencial importante que deve ser observado pelos educadores de forma crítica e criativa. Nela estão detalhados, além dos direitos, os objetivos, conhecimentos e habilidades esperadas, sejam para as fases da educação infantil, sejam para as etapas do ensino fundamental e médio. E ao identificá-los, a BNCC também estabelece os deveres do Estado, das escolas, dos educadores, das famílias, do sistema de justiça, enfim, de toda a sociedade. Em meio à atual tormenta, mesmo com seus defeitos e incompletudes a Base adquire um papel singular na promoção da equidade e na luta de resistência contra os retrocessos e os ataques que a instituição escola, os educadores e os alunos vêm sofrendo, seja por causa da crise sanitária, seja no plano político e ideológico. Ela pode ser um norte importante e um sólido amálgama conectivo quando, além de vidas, nosso futuro está em risco. Lembrando que não há bons ventos quando não se sabe para onde ir e em que porto se quer chegar.
Destaque para os educadores que são os agentes principais dessas conexões. Bem sabemos que qualidade da educação depende da qualidade das condições mediante as quais se exerce o magistério. Contudo, se o êxito das políticas educacionais depende de sua força, é espantoso constatar que eles sejam frequentemente “esquecidos”. São mulheres e homens que também têm sofrido severas perdas e danos, embora deles tanto se espere. Medidas autocráticas de cima para baixo e “soluções mágicas”, especialmente aquelas relacionadas ao emprego das novas tecnologias, tudo está condenado ao fracasso se forem apequenadas as contribuições e a importância daqueles que são a “alma” da educação escolar. Por isso, quaisquer que sejam os instrumentos destinados ao enfrentamento dos problemas causados pela crise, esses profissionais precisam, necessariamente, ser respeitados e participar dos processos de criação e decisão. Se formos capazes de realizar essas conexões virtuosas, talvez possamos não só sobreviver à tempestade, mas sair dela melhor do que quando entramos.
*Cesar Callegari é sociólogo, educador e consultor educacional. Foi Secretário de Educação Básica do MEC, Secretário de Educação do Município de São Paulo e membro do Conselho Nacional de Educação onde presidiu a Comissão de Elaboração da Base Nacional Comum Curricular. É Presidente do Instituto Brasileiro de Sociologia Aplicada-IBSA www.ibsa.org.br
Excelente palestra